Contratação de serviços de treinamento e aperfeiçoamento de pessoal na Administração Pública: uma breve análise da Decisão 439/98, Plenário do TCU
- By CRA-CE
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RESUMO
O macro sistema normativo que norteia as contratações governamentais lança enorme dificuldade ao aplicador quando da necessidade de contratar serviços de treinamento de pessoal, conduzindo-o, não raro, a contratações de cursos e professores aquém da expectativa de qualidade desejada, em virtude da equivocada ideia de que tais serviços devem ser licitados.
Em contraponto, a complexidade de certos conceitos, tais como o de “serviço singular” e de “notória especialização”, requisitos para o enquadramento da hipótese de inexigibilidade de licitação, constituem o maior desafio do intérprete, o que eleva sobremaneira o desafio de bem contratar as ações de capacitação. Em que pese o Tribunal de Contas da União já ter examinado detidamente tal questão, por meio da Decisão Plenária 439/1998, na qual concluiu ser a licitação para essas hipóteses de contratação, inexigível, as dificuldades e desafios persistem. Reexaminando o citado decisum, este trabalho busca melhor aclarar tais conceitos, bem como abordar questões de ordem prática que surgem no dia a dia das Escolas de Governo e que escaparam ao sempre percuciente exame do Plenário da Corte Federal de Contas. Tudo isso, com o objetivo de que as normas licitatórias sejam adequadamente cumpridas, sem desvios de finalidade, mas também, sem perda de eficiência e eficácia, considerando que a capacitação continuada dos servidores da Administração Pública é, sem sombra de dúvidas, meio de melhoria dos serviços públicos postos à disposição da sociedade.
1. INTRODUÇÃO À SITUAÇÃO-PROBLEMA
Não é de hoje a discussão, acalorada, diga-se, sobre como os órgãos e entidades da Administração Pública devem proceder para contratar aos servidores de seu quadro de pessoal, cursos de graduação, de pós-graduação, palestras, treinamentos específicos, conferencistas e instrutores, conciliando as normas legais para contratação de serviços (CF, art. 37, XXI e Lei 8.666/93) e as peculiaridades inerentes a essa espécie de prestação de serviço. As dificuldades são inúmeras e diversos são os fatores que contribuem para aumentar a insegurança no momento de celebrar tais contratos.
O primeiro ponto diz respeito à obrigação de realizar licitação. Como o dever de licitar é imperativo e fazê-lo pelo critério de menor preço é regra geral, o problema advém da imensa dificuldade de se estabelecer critérios de aferição idôneos que apontem com segurança a proposta efetivamente mais vantajosa, o que eleva sobremaneira o risco de insucesso na contratação. A experiência tem demonstrado que contratos dessa natureza, quando licitados, não raro, anotam má prestação de serviço e não atendimento aos objetivos colimados.
Outro fator que acaba soando negativo é a existência de sortida variedade de profissionais e empresas para o segmento de ensino e capacitação. O fato de haver, no mercado, grande variação de soluções para uma mesma demanda de treinamento, torna nebuloso o correto entendimento sobre questões como singularidade e notória especialização. Assim, uma característica do segmento que deveria ser considerado salutar e proveitoso, diante desse cenário, termina por dificultar a instrução dos processos. O precedente da Corte Federal de Contas acima epigrafado constituiu-se um marco na abordagem desse problema, em que pese o excelente trabalho desenvolvido a cargo do Instituto Serzedelo Corrêa, não encerrou os debates, anotando nas mesas de trabalho dos servidores envolvidos nesse tipo de contratação, uma série de dúvidas de ordem prática.
Objetivando trazer um pouco mais de luz a esse tema, vamos realizar uma releitura do citado precedente, a partir dos seus fundamentos para, no campo pragmático, propor algumas soluções que irão assentar um pouco mais esse assunto.
2. A INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO FUNDADA NO ART. 25, II: REQUISITOS E TRAÇOS MARCANTES
Na inexigibilidade de licitação, como é cediço, é a impossibilidade de submeter à competição que afasta o Dever Geral de Licitar, insculpido no art. 37, XXI da Carta Política de 1988. Essa impossibilidade sempre decorre do objeto, seja porque único, como nos casos de produto exclusivo, seja porque, mesmo não sendo exclusivo, se mostra inconciliável com a ideia de comparação objetiva de propostas. E é nesta em que justamente se amolda a hipótese ora em exame. Não é caso de eleição por parte do administrador, como é próprio das hipóteses de dispensa (art. 24)
Veja-se a redação da legislação:
Art. 25 – É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:(...)
II – para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;
Art. 13 – Para os fins desta Lei, consideram-se serviços técnicos profissionais especializados os trabalhos relativos a:
I – estudos técnicos, planejamentos e projetos básicos ou executivos;
II – pareceres, perícias e avaliações em geral;
III – assessorias ou consultorias técnicas e auditorias financeiras ou tributárias;
IV – fiscalização, supervisão ou gerenciamento de obras ou serviços;
V – patrocínio de causas judiciais ou administrativas;
VI – treinamento e aperfeiçoamento de pessoal; VII – restauração de obra de arte ou bem de valor histórico.
VIII – (Vetado)
Como se vê, o art. 25, II da Lei Geral de Licitações reconhece que determinados serviços, os “técnicos especializados”, quando “singulares”, são incomparáveis entre si, ainda que haja pluralidade de soluções e/ ou executores. O artigo 13 acima transcrito oferece uma lista de quais serviços são tratados como sendo “técnicos especializados”. O elemento central dessa hipótese de afastamento da licitação é a seguinte: possível presença de vários executores aptos, mas inviável a comparação objetiva de suas respectivas propostas. Conforme ensina Celso Antônio Bandeira de Mello (2004, p. 497),“são licitáveis unicamente (...) bens homogêneos, intercambiáveis, equivalentes. Não se licitam coisas desiguais. Cumpre que sejam confrontáveis as características do que se pretende e que quaisquer dos objetos em certame possam atender ao que a Administração almeja”.
A singularidade é justamente o elemento que torna o serviço peculiar, especial. Não será suficiente que o serviço esteja descrito no art. 13, pois, de per si, não o faz especial (singular). Deve haver, na execução ou em suas características intrínsecas, algo que o torne inusitado. Não se pode confundir singularidade com exclusividade, ineditismo ou mesmo raridade. Se fosse único ou inédito, seria caso de inexigibilidade por ausência de contendores, fulcrada no caput do art. 25, e não pela natureza singular do serviço. O fato de o objeto ser prestado por poucos profissionais ou empresas não impede que estes o disputem.
A despeito de haver opiniões em sentido contrário1 , outro conceito que entendemos impróprio é a de que a singularidade pode decorrer da notória especialização de seu executor. Para essa corrente doutrinária, a notória especialização envolveria uma singularidade subjetiva. Todavia, se imaginarmos que a inviabilidade pode decorrer da pessoa do contratado, teríamos que admitir a absurda ideia de que um mesmo objeto seria, a um só tempo, singular e usual, conforme a pessoa que o executar. Ora, o serviço é ou não é singular. Um projeto arquitetônico para casas populares, desprovido de qual[1]quer complexidade ou vanguardismo técnico, não pode ser classificado como singular apenas porque sua contratação recaiu no escritório de Oscar Niemeyer. O projeto, em si, continuaria usual. Jacoby (2011, p. 604), de forma bastante arguta, salienta que o processo de contratação de obras e serviços inicia-se, necessariamente, pela definição do objeto, o que envolve a elaboração do projeto básico e/ou executivo, e não pela escolha do executor. Acrescenta que “quando os órgãos de controle iniciam a análise pelas características do objeto, percebe-se quão supérfluas foram as características que tornaram tão singular o objeto, a ponto de inviabilizar a competição.”
Todavia, para configuração da inviabilidade de competição, não bastará que a contratação se amolde em um dos serviços arrolados no art. 13 e que o possa ser caracterizado como singular. Além disso, será imprescindível que ele seja prestado por profissional ou empresa que detenha notória especialização. Somente na presença desses três requisitos, e nessa ordem, é que estará configurada a inviabilidade de competição. A doutrina e a jurisprudência não destoam desse enunciado2 .
3. OS SERVIÇOS “TREINAMENTO E APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL”, DO ART. 13, VI, DA L. 8.666/93
Logo de plano é bom que se destaque que não seria razoável interpretação restritiva para considerar que o art. 13, VI quis limitar como conceito de serviço técnico especializado apenas as ações de treinamento, devendo ser estendido a todas as ações de educação, em todos os níveis. Assim, qualquer que seja o nome que se dê para o serviço (treinamento, aperfeiçoamento, desenvolvimento, capacitação, ensino) ele estará alcançado pelo inciso VI, do art. 13 da Lei 8.666/93. Estão incluídos nesse contexto a contratação de professores, instrutores e conferencistas quando chamados por via direta (pessoa física); contratação de cursos de extensão (curta ou longa duração), de graduação ou de pós-graduação na forma in company; inscrição em cursos de extensão, de graduação ou de pós-graduação abertos a terceiros na forma presencial ou no sistema EAD.
Dito isto, não resta dúvida de que, para esses ser[1]viços, o primeiro requisito para enquadramento na hipóteses de inexigibilidade encontra-se atendido, porquanto descritos no inciso VI, do art. 13. O próximo passo será determinar se, e em que casos, tais serviços assumem características singulares a ponto de tornar a licitação inviável. E para esse exame é mister que se faça uma análise sobre o que compõe o núcleo do objeto treinamento, pois é exatamente nele em que se identificará a peculiaridade que poderá torná-lo singular. Afinal, é a partir dele é que se medirá os resultados da execução.
Chamamos de núcleo do objeto do serviço a par[1]cela da execução que lhe dá identidade, que materializa a execução. A obrigação principal, que em qualquer ser[1]viço é um fazer. No serviço de limpeza, e.g., o núcleo do objeto reside na ação de limpeza propriamente dita (o fazer). A metodologia, a periodicidade, os equipamentos e insumos constituem apenas parte da especificação, mas não será responsável pelo resultado a ser obtido. Apenas quando o servente, aplicando a metodologia, seguindo a periodicidade e utilizando os equipamentos e insumos descritos no Termo de Referência, realiza a limpeza é que o serviço se dá por executado e se pode medir os resultados. Eis aí o núcleo do objeto limpeza. Qualquer que seja o profissional, a empresa, o local de execução, a região do País em que for executado, aplicando a metodologia e demais especificações, o resultado será idêntico ou aproximado e os objetivos perfeitamente alcançados. Daí porque não se pode dizer que o serviço de limpeza possui natureza singular. O objeto permite comparação objetiva entre as várias propostas. O mesmo, por via de regra, não ocorre nos serviços de treinamento.
Nos serviços de treinamento, os objetivos gerais e específicos, público alvo, metodologia e o conteúdo pro[1]gramático constituem características técnicas do objeto, mas definitivamente não é o núcleo. O objeto do serviço de treinamento só se materializa com a aula (o fazer). É por meio desta ação que o docente, fazendo uso da metodologia didático-pedagógica, utilizando os recursos instrucionais e aplicando o conteúdo programático, realiza o objeto. Portanto, o núcleo do serviço é a própria aula. Ora, se é a aula, não se pode, em regra, considerar que seja um serviço usual ou executado de forma padronizada; não se pode admitir que, quem quer que seja o executor (o professor), desde que aplicando os recursos acima, obtenha os mesmos resultados. Afinal, cada professor possui sua técnica própria, a forma de lidar com grupos, a empatia, a didática, as experiências pessoais, o ritmo e tom de voz, tornando-os incomparáveis entre si. Ademais disso, cada turma também possui características próprias que as distinguem umas da outras, a exigir do profissional adaptação a cada vez que se apresenta. Aliás, o próprio professor poderá executar o serviço de forma distinta a cada aula proferida, ainda que do mesmo tema, provocado, por exemplo, por uma mudança de visão e conceitos. Quer dizer, as aulas sempre serão diferentes, seja na condução, seja no conteúdo, seja na forma de exposição. Não há como negar que cada aula (cada serviço) é, em si, singular, inusitado, peculiar. Nesse diapasão, vale transcrever excerto do sub examine, citando lição de Ivan Barbosa Rigolin, em artigo publicado ainda sob a vigência do Decreto-Lei 2.300/86:
O mestre Ivan Barbosa Rigolin, ao discorrer sobre o enquadramento legal de natureza singular empregado pela legislação ao treinamento e aperfeiçoamento de pessoal (...) defendia que: ‘A metodologia empregada, o sistema pedagógico, o material e os recursos didáticos, os diferentes instrutores, o enfoque das matérias, a preocupação ideológica, assim como todas as demais questões fundamentais, relacionadas com a prestação final do serviço e com os seus resultados - que são o que afinal importa obter -, nada disso pode ser predeterminado ou adrede escolhido pela Administração contratante. Aí reside a marca inconfundível do autor dos ser[1]viços de natureza singular, que não executa projeto prévio e conhecido de todos mas desenvolve técnica apenas sua, que pode inclusive variar a cada novo trabalho, aperfeiçoando-se continuadamente. (Treinamento de Pessoal - Natureza da Contratação in Boletim de Direito Administrativo - Março de 1993, págs. 176/79)
O mesmo não ocorre com os treinamentos cujo núcleo do serviço não reside na aula, mas no método ou no material didático a ser aplicado. Nesses, a intervenção do professor é acessória, não sendo determinante na obtenção dos resultados esperados. A metodologia, sim, é que é a responsável pelo alcance desses resultados. Os cursos na metodologia Kumon é um excelente exemplo. Este método preconiza um “estudo individualizado que busca formar alunos autodidatas com material didático próprio e autoinstrutivo, permitindo ao aluno desenvolver os exercícios com o mínimo de intervenção do orientador....”3 (grifamos). O núcleo do objeto, ou seja, seu elemento essencial é o método e o material didático empregado. Nesse caso, não se vê presente o requisito da singularidade, pois quem quer que seja o orientador, desde que capacitado para tanto, em razão de sua mínima intervenção, os resultados obtidos serão uniformes, previsíveis, pois o método e o material didático que se constituem nos principais responsáveis pela obtenção dos resultados.
Diante do acima exposto, é correto afirmar que, sempre que o núcleo do serviço de treinamento for a aula (o fazer) significará que a atuação do professor será determinante para o alcance dos resultados pretendidos, revelando a natureza singular do serviço. Em contrapartida, caso o método supere a intervenção do mestre, o treinamento será licitável. Percebe-se que a lógica do dever geral de licitar (art. 37, XXI, CF), em relação a estes serviços se inverte, sendo, a singularidade a regra geral, na medida em que a quase totalidade das ações de capacitação são umbilicalmente dependentes da intervenção do professor. Somente em caráter excepcional é que um treinamento anotará características tão próprias que exigirá menor interferência do orientador.
Para afastar de vez a confusão de que ainda persiste existir em relação ao conceito de singularidade, aborda-se a situação da contratação de cursos e treinamentos que não são especializados ou originariamente montados para o órgão contratante. Ficamos com um exemplo clássico: Curso de Redação Oficial ou Atualização em Língua Portuguesa. Com enorme frequência, ouve-se o argumento segundo o qual este curso não seria de natureza singular porque “o tema não é complexo e há muitos professores de português no mercado”. Mais uma vez precisamos insistir que singularidade não é sinônimo de exclusividade ou raridade. Não é a quantidade de oferta de profissionais que indica a presença desse elemento no serviço, mas sim o exame do componente de seu núcleo, que, na hipótese é a didática própria do professor. A conclusão a que se chega é que, mesmo sendo um curso sobre tema de nível menos especializado, e havendo milhares de professores aptos, se a intervenção do mestre for determinante para o alcance dos resultados desejados, presente estará o elemento singular do serviço.
4. A DEMONSTRAÇÃO DE NOTÓRIA ESPECIALIZAÇÃO
Considerando que já foram enfrentados os dois primeiros requisitos para a configuração da inviabilidade de competição na contratação de treinamento e aperfeiçoamento de pessoal, resta avançar sobre o último desafio: problema da notória especialização. Parece-nos suficiente o texto da lei para dar solução a eventuais impasses, mas a prática tem demonstrado que não é bem assim. A primeira vista, tem-se uma falsa ideia de que notório especialista deva ser amplamente conhecido, quase famoso. Veja-se o texto legal:
Art. 25 – Omissis
(...)
- § 1º - Considera-se de notória especialização o profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e in[1]discutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.
Notório especialista é o profissional (ou empresa) que nutre entre seus pares, ou seja, “...no campo de sua especialidade...” a partir do histórico de suas realizações, elevado grau de respeitabilidade e admiração, de forma que se “...permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.”
O dispositivo em tela indica o norte de quais peculiaridades ou requisitos são considerados idôneos para se inferir se um profissional é ou não notório especialista, a saber: “...desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica...”. Mais ainda. A expressão “...ou de outros...” dá bem o tom de rol exemplificativo desses requisitos. O legislador admite, portanto, que outros conceitos e requisitos, não ditados no texto expresso da lei, podem servir de base à conclusão de que o profissional escolhi[1]do é o mais adequado à satisfação do contrato. Nota-se também, que a enumeração dos requisitos são alternativos. Significa que não é obrigatório que estejam todos contemplados na justificativa da escolha, bastando apenas o apontamento de um deles para balizá-la. Se se deseja contratar uma palestra sobre Ética na Abordagem Policial, destinado à tropa policial, um policial civil com vasta experiência operacional e reputação ilibada pode ser considerado notório especialista ainda que não tenha nível superior ou trabalhos publicados. É o seu histórico na profissão que permite, no caso concreto, que faça um prognóstico positivo sobre o alcance dos resultados a serem obtidos na palestra.
4.1 A DISCRICIONARIEDADE DO ATO DE ESCOLHA DO PROFISSIONAL OU EMPRESA
Ao conceituar “notória especialização”, o dispositivo legal encerra com a expressão “que permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato”. Não restam dúvidas de que essa escolha dependerá de uma análise subjetiva da autoridade competente para celebrar o contrato. Nem poderia ser diferente, pois se a escolha pudesse ser calcada em elementos objetivos a licitação não seria inviável. Ela é impossível justamente porque há impossibilidade de comparação objetiva entre as propostas.
Consequentemente, uma vez que a escolha se dará por meio de uma avaliação subjetiva, ou seja, juízo de valor pessoal de quem detém a competência para realizar a escolha, partir da soma de informações sobre a pessoa do executor (experiências, publicações, desempenho anterior etc), em comparação com esses dados dos demais possíveis executores, nítido está que a escolha é essencialmente discricionária. Será a autoridade competente que, respeitando o leque de princípios a que se submete a atividade administrativa, notada[1]mente, legalidade, impessoalidade, indisponibilidade do interesse público e razoabilidade, e ainda, sopesando as opções à sua disposição, com fulcro em seu juízo de conveniência, indicará aquele que lhe parecer ser o “indiscutivelmente mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.” Mais uma vez nos socorreremos de excerto do já citado Acórdão 439/98-Plenário, TCU, que traz anotação de brilhante lição do saudoso Eros Roberto Grau:
Sobre a prerrogativa da Administração de avaliar a notória especialização do candidato, invocamos novamente os ensinamentos de Eros Roberto Grau, na mesma obra já citada: ‘...Impõem-se à Administração - isto é, ao agente público destinatário dessa atribuição - o dever de inferir qual o profissional ou empresa cujo trabalho é, essencial e indiscutivelmente, o mais adequado àquele objeto. Note-se que embora o texto normativo use o tempo verbal presente (‘é, essencial e indiscutivelmente, o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato’), aqui há prognóstico, que não se funda senão no requisito da confiança. Há intensa margem de discricionariedade aqui, ainda que o agente público, no cumprimento daquele dever de inferir, deva considerar atributos de notória especialização do contratado ou contratada.› (Eros Roberto Grau, in Licitação e Contrato Administrativo - Estudos sobre a Interpretação da Lei, Malheiros, 1995, pág. 77) (grifamos)
É idêntica a posição de Celso Antônio Bandeira de Mello(2004, p. 507), que, com a habitual precisão, esclarece que:
“É natural, pois, que, em situações deste gênero, a eleição do eventual contratado — a ser obrigatoriamente escolhido entre os sujeitos de reconhecida competência na matéria — recaia em profissional ou empresa cujos desempenhos despertem no contratante a convicção de que, para o caso, serão presumivelmente mais indicados do que os de outros, despertando-lhe a confiança de que produzirá a atividade mais adequada para o caso. Há, pois, nisto, também um componente inelimitável por parte de quem contrata.”
4.2 QUEM DETÉM O NOTÓRIO SABER: O PROFESSOR OU A EMPRESA?
Outro questionamento de ordem prática que é comumente suscitado é o problema de se identificar se é a empresa ou o profissional o detentor da notória especialização. De um modo geral, raramente os profissionais (notórios especialistas) são contratados diretamente como pessoa física, mediante Recibo de Pagamento a Autônomo-RPA, dando preferência a serem contratados por meio de empresas de organização de eventos. As[1]sim o fazem em razão da disponibilização de estrutura (passagens aéreas, hospedagem, alimentação) o que se[1]ria previamente arcado pelo profissional caso ele fosse contratado como Pessoa Física. A pergunta que se faz é como justificar a contratação em nome da empresa, mas justificar a notória especialização do profissional? A resposta pode estar no próprio art. 25 da Lei 8.666/93, em seu inciso III. Já ficou assente que a inexigibilidade de licitação aqui tratada se funda na impossibilidade de comparação objetiva das propostas por depender de critérios de ordem valorativa de cunho pessoal do agente competente (ato discricionário). Teleologicamente é a mesma origem do reconhecimento da inviabilidade de competição para contratação de profissionais do setor artístico. Para este, o inciso III do art. 25 autoriza a contratação do artista não só por via direta, mas também “... através de empresário exclusivo...”. Por analogia, a mesma solução pode ser conferida à contratação de professores, quando contratados por intermédio de empresas de organização de eventos. É de se reconhecer que o docente atuará, nessa hipótese, mediante intermediação, exatamente como é comum na classe artística. Entendo que a situação é mais que análoga; é quase idêntica. Não que o professor contratado tenha que demonstrar ser exclusivo de forma per[1]manente de certa empresa de organização de eventos. Mesmo porque isso é quase inexistente no mercado. Mas, para o projeto específico, alvo da contratação, sem dúvida, atuará em caráter de exclusividade relativa, considerando que, de um modo geral, cada professor/conferencista costuma atuar ao lado de mais de uma empresa ou instituição.
5. O ATUAL ENTENDIMENTO DO TCU SOBRE O TEMA
A decisão acima gerou estudos que culminaram na Decisão 439/1998, cuja relatoria coube ao Min. Adhemar Paladini Ghisi, e que se tornou um divisor de águas sobre a matéria. A Secretaria Geral de Controle Externo do Tribunal, unidade técnica designada para conduzir os estudos, chegou à conclusão de que, na imensa maioria dos cursos, a intervenção do instrutor é determinante para a obtenção dos resultados pretendidos, sugerindo, ao final, como proposta de decisão, que a Corte fixasse o entendimento de que
“...se enquadra na hipótese de inexigibilidade de licitação prevista no inciso II do art. 25, combinado com o inciso VI do art. 13, da Lei 8666/93 a contratação de professores, conferencistas ou instrutores, para ministrar aulas em cursos de treinamento, de formação ou de complementação de conhecimentos de servidores especializados,...”.
Mas assim o fez limitando o entendimento apenas em relação àqueles treinamentos que fossem desenvolvidos de modo específico para a unidade contratante, ou ainda aqueles voltados para as peculiaridades dos prováveis treinandos. Prosseguindo na proposta de encaminhamento, também entendeu ser perfeitamente possível a realização de certame licitatório nos casos de cursos “... baseados em programas convencionais ou dirigidos a servidores não especializados...”, por entender que, nestes casos, não existe o elemento da singularidade. Nada obstante, o entendimento do relator foi ainda mais longe, aduzindo que
...a inexigibilidade de licitação, na atual realidade brasileira, estende-se a todos os cursos de treinamento e aperfeiçoamento de pessoal.. e que a inexigibilidade de licitação para contratação de treinamento e aperfeiçoamento de pessoal, na atualidade, é regra geral, sendo a licitação exceção.
Acompanhado à unanimidade pelo Pleno, o TCU fixou o seguinte entendimento:
O Tribunal Pleno, diante das razões expostas pelo Relator, DECIDE: 1. considerar que as contratações de professores, conferencistas ou instrutores para ministrar cursos de treinamento ou aperfeiçoamento de pessoal, bem como a inscrição de servidores para participação de cursos abertos a terceiros, enquadram-se na hipótese de inexigibilidade de licitação prevista no inciso II do art. 25, combinado com o inciso VI do art. 13 da Lei nº 8.666/93; 2. retirar o sigilo dos autos e ordenar sua publicação em Ata; e 3. arquivar o presente processo.
Em que pese a força dos argumentos expendidos ao longo do extenso e brilhante voto em apreço, bem como dos luminares mestres citados no relatório que lhe deu supedâneo, enxergo, com as devidas vênias, que este entendimento merece as pequenas reformas aqui propostas.
Como dito antes, também partilhando do entendimento de que na contratação de cursos, a regra é a inexigibilidade e a licitação a exceção, pensa-se que o ponto de referência deva ser o grau de interferência do instrutor para o alcance dos resultados pretendidos no treinamento. Reconhecendo a existência (em via de exceção) de cursos cuja metodologia didático- -pedagógica torna a intervenção do instrutor menos determinante na obtenção dos resultados, cogita-se que não se deva generalizar da forma como decido pelo Egrégio Tribunal de Contas da União. Todo o processo de contratação de cursos exigirá da autoridade competente seu correto enquadramento legal, com demonstração da presença inequívoca de todos os requisitos legais (explicitação da característica singular do serviço, demonstração de notória especialização e justificativa da razão da escolha do executor dentre as alternativas possíveis). A generalização reconhecida no decisum em comento, que considera presumidamente singulares todos os cursos, pode conduzir à fragilidade da instrução do processo na medida em que pode se considerar quase desnecessária a caracterização do serviço como sendo singular. Também se considera necessário o ajuste sobre a fundamentação no art. 25, II c/c 13, VI da Lei 8.666/93 para inscrição de servidores em cursos abertos. É inviável, sim, a competição em razão de ser, aquele evento, específico, único. Pode haver programação do mesmo tema, com o mesmo instrutor, pela mesma empresa, na mesma cidade, mas ainda sim, cada qual será único. Os vários cursos, ainda que idênticos, representam objetos apenas assemelhados, porém, distintos. Não se pode cogitar no sentido de que há várias opções intercambiáveis. Argumentar que o curso pretendido se repetirá ao longo do ano, não é convincente, pois constituem objetos não cotejáveis. Uma prova disso é que não é possível garantir que um curso aberto venha a ser realizado, pois depende de quórum mínimo para sua confirmação. Portanto, jamais poderiam ser postos em comparação para disputa. Entende-se que a licitação para cursos abertos é in[1]viável, antes, pelo fato de que cada um é único. Claro que em boa parte dos casos, o curso aberto também poderá ser enquadrado no dispositivo acima quando prestado por notório especialista. Mas sendo ou não singular, sendo ou não prestado por notório especialista, por exemplo, um curso aberto a terceiros na metodologia Kumon, seria ilicitável pelas extensas razões aqui já defendidas. Daí por que a melhor solução para contratos dessa natureza é o enquadramento da inviabilidade de licitação fundamentada no art. 25, caput.
6. CONCLUSÃO
Em síntese, chegamos às seguintes conclusões: a. nos serviços de treinamento e aperfeiçoamento de pessoal, a determinação da singularidade está relacionada ao núcleo do seu objeto, que é a aula; b. como a aula não é uma atividade padronizada e os variados docentes são incomparáveis entre si, sempre que a intervenção destes for determinante para a obtenção dos resultados pretendidos, o serviço será singular; c. tais serviços são, em regra, singulares, salvo aqueles cujo método supere o docente na obtenção dos resultados esperados; d. na contratação de cursos, a escolha da pessoa do executado é ato discricionário e exclusivo da autoridade competente, que deverá apontar as razões que o fizeram inclinar-se por este ou aquele profissional ou empresa; e. cursos abertos a terceiros são sempre ilicitáveis pelo fato de se constituir em objeto único que se esgota com a execução, devendo ser contratados com base no art. 25, caput da Lei Geral de Licitações;
Luiz Cláudio de Azevedo Chaves
Prof. da Fundação Getúlio Vargas, Prof. Convidado da PUC-Rio, Consultor do Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM)